Fabio De Masi: “A economia alemã depende da força de trabalho barata” do Sul da Europa

O ex-deputado, agora eleito para o Bundestag pelo Die Linke, diz que Merkel “destruiu com a austeridade as economias europeias para, depois, receber jovens desempregados de Portugal, Espanha, Itália”

01.11.2017

A política europeia ficou em suspenso até às eleições alemãs. A chanceler Angela Merkel voltou a ganhar um terceiro mandato, iniciando esforços para formar uma nova coligação governativa. Desta vez o SPD ficou de fora e Merkel iniciou negociações com os Liberais e com Os Verdes. Será que a política alemã na Europa irá mudar nos próximos quatro anos?

O i falou com Fabio De Masi, ex-eurodeputado e recentemente eleito para o parlamento federal alemão pelo Die Linke sobre o legado de Merkel, a nova solução governativa, os resultados obtidos pelo Die Linke e a Europa deverá esperar da chanceler alemã nos próximos quatro anos.

Como caracterizaria os dois mandatos da Chanceler Angela Merkel?

Angela Merkel usou a oportunidade da crise do euro para expandir o seu poder sobre a Europa. A Alemanha sempre foi considerada um gigante económico, mas também um anão político. E agora a Alemanha é um gigante económico e político, mas não em benefício da Europa. Internamente, foi muito cuidadosa. Merkel nunca avançaria na Alemanha com as mesmas políticas que forçou para a Grécia, Portugal ou outros países, porque aí deixaria de ser a chanceler da Alemanha.

Pela primeira vez desde a II Guerra Mundial um partido de extrema-direita, o AfD, entrou no parlamento alemão. Como vê este resultado?

É uma enorme mudança política na História do nosso país. Acho que é o resultado de uma combinação da austeridade, que começou com o Governo Vermelho-Verde, o Governo Schroder [1998-2005], e a crise dos refugiados. Por um lado, existe imenso apoio das classes médias alemãs para se acolher os refugiados e os problemas relacionados com a integração das pessoas empurrou-as para os guetos alemães, onde a maioria vive sem perspectivas para o mercado de trabalho e com a deterioração dos serviços públicos. Esta situação também atingiu os partidos de esquerda por termos perdido a nossa base eleitoral tradicional. Por outro lado, as classes médias de direita sentem-se culturalmente ameaçadas e não representadas pelos democratas-cristãos por Merkel ter tentado modernizar o partido para as elites urbanas. Esta é a razão do porquê a coligação jamaica – que inclui a CDU, o FDP e Os Verdes – ser tão fundamental para Merkel, pois pode demonstrar que consegue fazer uma coligação com todas as forças políticas na Alemanha e, como em todas as coligações anteriores, vai encolhê-los eleitoralmente.

No seu início a AfD não era um partido de extrema-direita, mas anti-euro. Como se transformou?

Acho que eles sempre jogaram com o racismo e a xenofobia. As pessoas com estas ideias sempre estiveram no partido, mas a liderança sempre foi mais pela dissimulação económica, se compararmos com os liberais. O AfD basicamente dividiu-se sobre se se devia focar na questão do euro ou na islamofobia, refugiados e ameaças à segurança nacional e por aí fora. O partido alcançou os 5% nas sondagens por causa dessa divisão e, depois dos liberais económicos terem abandonado o partido, o AfD teve a prenda da crise dos refugiados, usando-a como oportunidade. Foi basicamente o renascimento do partido e, agora, é claro que até pessoas, como Frauke Petry, que estavam a favor dos que defendiam a realização de campanhas anti-refugiados, têm abandonado o partido por ter ido demasiado para a direita.

Um partido de extrema-direita na Alemanha não coloca a História do país na II Guerra Mundial na agenda política? A sociedade alemã não deveria recusar à priori o partido e as suas ideias?

Durante muito tempo existiu um tabu na Alemanha. Exceptuando alguns partidos pequenos que defendiam o período da II Guerra Mundial, nunca existiu nenhum partido que se conseguisse estabelecer à direita da CSU [o partido irmão da CDU na Baviera] e certamente que isto foi um choque para a classe política conservadora. O AfD conseguiu-o essencialmente por ter uma liderança carismática, algo que os outros partidos menores não tinham. O AfD tenta agora apresentar-se como um partido burguês com muitos professores e académicos e tenta apelar subtilmente ao nazismo, mas fazem-no muito inconscientemente. Por exemplo, Alexander Gauland, outrora editor de um jornal conservador muito reconhecido e membro da liderança da CDU, disse basicamente que apesar dos terríveis crimes [do nazismo] que a Alemanha deveria ter orgulho do heroísmo dos soldados alemães na II Guerra Mundial. Assim, vê-se que eles tentam apelar… ­– e nunca houve um verdadeiro debate sobre o tema no país.

O AfD tenta permanentemente marcar a agenda política ao provocar a opinião pública e o problema é que os outros partidos respondem frequentemente com “nazismo” e por aí fora, o que é verdade. Mas não ajuda muito por alguma da base eleitoral do AfD não se sentir assim, não sente que a II Guerra Mundial ou a História da Alemanha são os assuntos mais prementes. Apenas quer que as suas necessidades materiais sejam resolvidas. Teme que, enquanto classe média, desça na escada social, ao mesmo tempo que se confronta com algumas mudanças, o que descreveríamos como globalização, imigração, entre outras. Os eleitores não se sentem nazis e, portanto, quando os outros partidos atacam o AfD, este pode assumir-se como a única força anti-establishment, o que dificulta muito o trabalho da esquerda por se apresentar como a única força que se opôs às políticas de austeridade na Alemanha.

Como disse, durante a campanha eleitoral os líderes do AfD fizeram declarações sobre o passado nacional-socialista da Alemanha. Acha que os meios de comunicação social ajudaram o AfD a obter o resultado que teve ao lhe dar uma cobertura quase permanente?

Não de propósito, mas fizeram-no efectivamente. O AfD é particularmente fraco no que toca a resolver os problemas que o eleitorado espera que sejam resolvidos. Dou-lhe um exemplo. Imensos eleitores estão preocupados com as pensões, com a pobreza dos pensionistas, ou com a falta de investimento no nosso serviço nacional de saúde e foi muito interessante ­ver que no debate de todos os candidatos com Merkel nenhum dos partidos os abordou, nem mesmo a social-democracia que os estava a contestar. Teve de ser a plateia a abordá-los, tornando-se virais nas redes sociais. Estes são os temas com que as pessoas se preocupam. Se olhar para o programa do AfD verá que eles querem um aprofundamento das privatizações das pensões, querem austeridade e nenhum investimento público. Basicamente, seria ainda mais fácil desmascará-los do que, digamos, à Frente Nacional em França. Esta última tem uma política social, mesmo que seja exclusivamente para os franceses, mas pelo menos têm um programa social, enquanto o AfD não.

É uma mistura entre neoliberalismo e racismo e xenofobia?

Exactamente. Isso é muito comum para partidos de direita do norte da Europa. Nenhum partido no sul da Europa ganha eleições se defender políticas de austeridade, mas no norte da Europa as pessoas têm a impressão errada de que irão pagar pelos pensionistas gregos ou pelos desempregados portugueses e, portanto, os partidos de direita têm inúmeras políticas elitistas de austeridade. É-se capaz de desmascará-las, mas a AfD direcciona a agenda mediática e política noutra direcção, fazendo com que não haja questões relativamente ao seu programa económico. Os meios de comunicação social deram imensa atenção sensacionalista a algumas das suas declarações, ajudando o partido. Cerca de 80% do país opõe-se à AfD, mas têm permanentemente atenção pública, o que faz com que toda a gente fale da organização. Aqueles 15 ou 20% a favor do partido, e que fazem parte do seu eleitorado alvo, pensam: “se toda a gente os ataca, então é porque devem dizer algo que está correcto”.

Martin Schulz foi a grande esperança dos sociais-democratas alemães, mas depois teve, nas eleições de 24 de Setembro, um resultado abaixo do esperado. Porquê?

Antes de mais, Martin Schulz foi tão popular porque ninguém o conhecia na Alemanha. O que quero dizer é que no início foi tão bem sucedido nas sondagens por ser o único líder social-democrata que não estava envolvido na política doméstica alemã. Todos os que eram conhecidos ou estavam envolvidos ficaram queimados pelo apoio que deram às reformas do mercado laboral, em que se baixaram salários e se degradou o Estado Social. Então, importaram-no de Bruxelas por pensarem que era o único candidato que ainda não se tinha queimado – e funcionou no início. Demonstrou o quanto o eleitorado social-democrata estava desesperado e disposto a perdoar a social-democracia se esta decidisse corrigir realmente as suas políticas e direccionar-se para a esquerda.

As minhas críticas ao SPD baseiam-se no facto de que durante quatro anos tivemos uma maioria contra a Sra. Merkel no parlamento alemão e nunca foi usada, exceptuando para a questão do casamento por casais do mesmo sexo – e mesmo assim só porque a Sra. Merkel o permitiu. Por muito que apoie o casamento por casais do mesmo sexo, muitas mais pessoas são afectadas pelas actuais regras do mercado laboral e desafiámos o SPD que a apresentar também moções sobre trabalho temporário, para restaurar o sistema de pensões, para alterar o sistema fiscal, aumento de investimento público, entre outros temas, e se o tivessem feito teria significado que teríamos usado essa maioria e que a coligação [CDU-SPD] se teria partido ao meio. Esta teria sido a única hipótese do Sr. Schulz, pois teríamos eleições antecipadas quando ele ainda estava em alta nas sondagens. Não se pode formar uma coligação para o governo se nunca se trabalhou em conjunto no parlamento, mas Schulz estava receoso e queria deixar a porta aberta a uma eventual grande coligação sob a sua liderança. O que tentou foi basicamente reunir uma plataforma de oposição enquanto mantinha o SPD no governo. As pessoas não acreditaram nisso.

A coligação a que se refere era a possível coligação SPD-Die Linke- Os Verdes?

Exatamente. E se tivesse usado essa maioria teria de chamar também Os Verdes, sendo que a liderança destes queria entrar numa coligação com a CDU e teriam de se decidir: iriam para a direita ou para a esquerda? Se Schulz tivesse usado essa coligação antes das eleições poderia ter restaurado a confiança na social-democracia, ao mesmo tempo que apelava aos Verdes para não formarem uma coligação de direita com a CDU e provocava eleições antecipadas. Porém, não estava preparado – Schulz não é um Jeremy Corbyn. Schulz pode até não representar o que a social-democracia em Portugal representa. Ele é basicamente parte da velha classe política conservadora alemã.

Schulz foi um dos grandes apoiantes da actual solução governativa portuguesa.

Sim, é possível, mas se olhar para as suas declarações, enquanto foi Presidente do Parlamento Europeu, sobre a Grécia, a protecção que deu a Juncker [ex-presidente da Comissão Europeia] durante o escândalo LuxLeaks e o papel que teve nas reformas do mercado de trabalho alemão, verá que não é um esquerdista. Contudo, percebeu que era preciso dar algo de novo ao eleitorado que o SPD tinha perdido, mas nenhuma acção se seguiu. O outro problema foi que a questão da imigração atingiu os dois maiores partidos alemães e penso que teríamos tido um debate completamente diferente sobre imigração se, por exemplo, Merkel ou Schulz tivessem dito: “o que precisamos agora para confrontar o maior desafio desde a II Guerra Mundial é um grande investimento público”. Aí o eleitorado poderia ter sentido que pelo menos agora que os imigrantes estão a vir poderemos ter investimento nas nossas escolas e universidades, mas não aconteceu.

O Die Linke estava disponível para fazer uma coligação com o SPD? O exemplo português influenciou-vos de alguma forma?

Não existiu grande debate na Alemanha sobre essa possibilidade. O que dissemos enquanto partido foi que em Portugal a solução governativa foi suficiente para não se continuarem as anteriores políticas de austeridade para a economia poder recuperar. As pessoas no nosso partido simpatizavam com isso, o que não significa que estivéssemos a sugerir essa via.

Houve debate interno?

Não houve muito.

Gregor Gysi, um dos líderes do Die Linke, apoiou imenso essa possível coligação.

É possível, mas não ocorreu nenhum grande debate sobre isso. Talvez tenha feito algumas declarações…Talvez as pessoas apoiassem essa decisão, mas essa possibilidade não desempenhou um grande papel nos nossos debates internos. O que posso dizer definitivamente é que estaríamos prontos a qualquer momento para uma coligação com o SPD – e temo-lo dito ao longo dos anos –, mas não ao preço de continuarmos com as mesmas políticas que a coligação Vermelho-Verde fez a partir de 1998 e que levaram à criação do nosso partido. O problema na Alemanha é que os maiores crimes contra o Estado Social e mercado laboral foram sempre feitos por partidos de centro-esquerda por o governo conservador ter receio de o fazer. Teria logo sindicatos e a social-democracia nas ruas. O maior assalto ao sistema de pensões, justiça fiscal, mercado laboral foi feito por um governo Vermelho-Verde e, portanto, dissemos que iríamos entrar num governo semelhante se revertêssemos as reformas do mercado laboral, se tivéssemos investimento público, se retirássemos os nossos soldados de conflitos internacionais e se restaurássemos o sistema de pensões.

Eram as vossas linhas vermelhas?

Eram os nossos grandes pontos de referência. Se fosse aceite teríamos entrado imediatamente no governo, mesmo sem termos um acordo de coligação oficial, e votado num chanceler social-democrata. Mas a social-democracia promete muito durante as eleições mas depois destas faz o seu oposto. O problema é que se entrasse numa coligação em que repetíssemos as políticas falhadas do passado, desapareceríamos – e com razão. Quando se fala de uma coligação Vermelho-Vermelho-Verde muitas pessoas não sabem do que se está a falar por nunca termos tido um projecto comum e quando pensam na coligação Vermelho-Verde sustêm a respiração por se lembrarem que nesse governo os salários e as pensões desceram, os soldados alemães foram enviados pela primeira vez para conflitos internacionais, etc.

Mas em alguns Landers já existe coligações entre o SPD e o Die Linke.

É verdade, inclusive temos um governo regional liderado pelo Die Linke na Turíngia. No entanto, são governos regionais e não têm muito espaço para alterar as políticas fiscais, têm de executar as políticas sociais que vêm do governo federal e, por isso, não são um grande ponto de referência. Temos duas câmaras na Alemanha e para algumas leis serem aprovadas precisamos da aprovação das duas. Se houvessem mais coligações em governos regionais seria mais fácil avançarmos com maiores reformas na Alemanha. Essas coligações trabalham sem grande espectacularidade e não conseguem fazer muito contra as grandes tendências no país, como a crescente desigualdade e as reformas do mercado do trabalho.

O SPD deverá ficar na oposição, restando a Merkel a tentativa de formar uma coligação Jamaica com os Liberais e com Os Verdes. Acha que consegue?

É provável, mas ainda não é claro. Diria que existem 50% de hipóteses e por duas razões. A primeira é que Os Verdes tiveram resultados eleitorais abaixo dos esperados com a sua liderança à direita e, portanto, a única coisa que conseguem fazer é pelo menos fazer parte do governo. Para eles é muito importante e irão concordar com tudo desde que tenham um ou dois ministros. Já os Liberais encontram-se numa posição muito confortável por terem tido uma recuperação eleitoral forte e por não precisarem de ir para o governo. A CDU precisa de uma maioria e a Sra. Merkel precisa desesperadamente de uma coligação com Os Verdes, até acho que a quer mais do que com os Liberais, porque o seu projecto é continuar a modernizar a CDU e poder dizer que consegue fazer uma coligação com toda a gente para limitar a capacidade da social-democracia em formar novas maiorias contra si. Acho que a coligação irá acontecer, mas o problema é a base tradicional dos conservadores estar sob uma enorme pressão por parte do AfD e, portanto, se a CDU fizer grandes concessões aos Verdes poderá ser atacada pelo AfD. O maior problema seria o SPD entrar novamente no governo, o que faria com que o AfD fosse o maior partido de oposição, dando-lhe a primeira resposta a todos os discursos que Merkel faria no parlamento alemão. Toda a gente quer evitá-lo. E é por isso que há um claro interesse entre todos os actores políticos em se formar uma coligação Jamaica, enquanto o SPD fica na oposição.

Acha que Merkel irá adoptar medidas do AfD para não perder alguma da sua base eleitoral para este partido?

A CSU está a pressionar nesse sentido, como na limitação da imigração. Merkel terá de balançar a pressão dentro do seu partido, por um lado, com as concessões aos Verdes, por outro. Como este será o seu último mandato está muito mais livre para fazer o que quiser, pessoalmente. Não tem de assegurar a sua maioria pessoal, mas se quiser assegurar os próximos quatro anos terá de fazer algumas concessões menores. Acredito que como é o seu último mandato tentará manter o rumo que seguiu até aqui: uma postura muito dura nos assuntos europeus e a pressão para se prosseguir com as políticas de austeridade, enquanto avança com uma maior integração europeia, retirando aos Estados as suas decisões democráticas com a federalização da Europa.

O Die Linke teve 9,2% nas últimas eleições legislativas alemãs, ficando em quarto lugar. Foi acima ou abaixo das expectativas?

Tendo em conta que nas últimas eleições tivemos cerca de 8% e que a situação era bastante desafiante desde o aparecimento do AfD, que se assumiu como força política anti-establishment, acho que foi um sucesso. Ganhámos 500 mil novos votos. No entanto, não atingiu as expectativas no que concerne ao tornarmo-nos na maior força a seguir ao SPD. Parte do problema foi que nas últimas semanas os meios de comunicação social se focaram muito na coligação Jamaica, mesmo que fôssemos mais fortes que os Liberais e Os Verdes nas sondagens. Alguns dos eleitores do SPD mudaram para Os Verdes por pensarem que assim fortaleceriam o partido, dando mais força à possível coligação Jamaica. Foi um ambiente muito difícil e, portanto, nestas condições conseguimos atingir o segundo melhor resultado eleitoral na História do Die Linke a nível federal. Ganhámos imenso nas zonas urbanas entre os jovens eleitores, mas perdemos votos entre a nossa base tradicional, entre os quais 40 mil para o AfD, particularmente no Leste. Historicamente, o nosso partido era mais fraco no Ocidente e forte no Leste, mas agora parece que normalizámos com um fortalecimento no Ocidente, que é a maior parte da Alemanha.

Qual será doravante a vossa estratégia?

Na minha opinião pessoal, acho que precisamos de nos diferenciar claramente dos outros partidos. Isso não tem resultado nos últimos meses, particularmente durante a crise dos refugiados. O AfD tornou-se na nova novidade como força anti-establishment e nós fomos vistos como parte dos velhos partidos políticos. O que precisamos é de mais Corbyn e Sanders no sentido de irmos para as comunidades mais excluídas e de nos tornarmos mais visíveis no nosso trabalho. A nossa líder, a Sahra Wagenknecht, é muito popular, porém o eleitorado diz: “gostamos dela, mas não do partido”, o que temos de mudar. Temos diferentes estratégias dentro do partido; umas debruçam-se mais nas jovens elites urbanas, enquanto outras focam-se mais na classe trabalhadora alemã. Acho que precisamos das duas e de combinarmos os interesses. Quando éramos fortes com 12% dos votos, conseguíamos combinar as duas e, portanto, precisamos de nos diferenciar. Como? Por exemplo, na crise dos refugiados devíamos ser o único partido a focar-se nos assuntos sociais, mesmo para aqueles que se sentem ameaçados pela imigração, não por sermos xenófobos mas por dizermos que precisamos de parar a austeridade, de termos mais investimento político e medidas para evitar o dumping salarial, de protegermos aqueles que vêm e aqueles que já cá estão. Para além disso, somos a única força política – e isso também contrasta com os Liberais e Verdes – que fala das políticas falhadas de mudança de regime no Médio Oriente, da exportação de armas alemãs para a Arábia Saudita e etc. Os outros partidos dizem que querem abrir as portas aos imigrantes para terem engenheiros portugueses a trabalhar na Alemanha, mas aqueles migrantes que não têm cursos superiores querem-nos pôr nos guetos. Precisamos de nos diferenciar deles e nas nossas críticas ao AfD, temos de atacar nos assuntos sociais demonstrando que são neoliberais e que querem privatizar as pensões. Os outros partidos também o defendem e é preciso que haja um partido que se oponha e que represente a grande maioria do eleitorado neste tema. Os outros partidos limitam-se a atacar o AfD com base no nazismo e etc –  tudo bem, mas nós temos de ter outra abordagem. O AfD está perto dos outros partidos nos temas económicos, o que nos permite conquistar os eleitores abandonados.

Em 2013, Angela Merkel abriu as fronteiras para acolher os refugiados, mesmo que contra a CSU. Porque o fez?

Acho que não estava preocupada com os refugiados, mas sim com Schengen, com o mercado interno. Se se fecham as fronteiras para os refugiados, então em certo sentido também se fecham as fronteiras para as exportações alemãs. A economia alemã depende de fronteiras abertas e, portanto, acho que apenas quis comprar tempo para retirar alguma da pressão dos outros países, enquanto, ao mesmo tempo, arranjava outra solução com um sombrio acordo com Tayyip Erdogan [presidente da Turquia] para fechar as fronteiras europeias. Foi isso que fez. Aliás, até tirou selfies com refugiados por saber que existia muita solidariedade e que a podia capitalizar, mas ao mesmo tempo tinha uma política muito dura em que não teve quaisquer problemas em negociar com patrocinadores do Estado Islâmico e autocratas como Erdogan. Esse foi o principal motivo dela. A economia alemã depende de força de trabalho barata e foi o que Merkel fez nos últimos anos. Destruiu com a austeridade as economias europeias para, depois, receber jovens desempregados de Portugal, Espanha, Itália. Há médicos a trabalharem em call-centers alemães.

A diferença que o Die Linke deve fazer é em demonstrar que não há problema com a imigração, caso seja uma escolha voluntária. Se um estudante português vem para a Alemanha, se apaixona e quer fazer a sua carreira cá, não há problema nenhum. Porém, se as pessoas são obrigadas a abandonar os seus países por causa da austeridade, de maus e injustos acordos comerciais e da exportação de armas, então é uma catástrofe. Muitos dos refugiados não têm qualificação superior e terão muitas dificuldades em se integrarem no mercado de trabalho, o que fará com que tenham uma vida muito má nas margens da sociedade alemã , nomeadamente em guetos. Isso é uma bomba relógio. Quando pessoas não têm emprego não aprendem a língua, não tem contactos sociais e acabam por ficar isoladas. A sociedade começa-se a desintegrar. É um direito ficarem nos seus países e é um direito irem para outros países se for por livre escolha. Os outros países não querem o direito a ficarem nos seus países mas querem ter o direito a escolher quais os refugiados que querem aceitar: querem um médico sírio mas não um desempregado romeno. Não é suficiente aceitar as pessoas qualificadas de outros países, temos também de investir nas áreas segregadas para não ser apenas a classe trabalhadora a lidar com o facto de viverem mais pessoas na Alemanha. Temos mais pessoas mas não temos mais investimento, nem mais um euro em habitação e educação, o que aumenta a competição por salários, habitação e etc.

O Die Linke propõe um aumento de investimento…

Exato. Queremos mais investimento, mas também ir às raízes dos problemas. Queremos estabilizar o Médio Oriente para que as pessoas não tenham de fugir de lá. Queremos mais dinheiro para os países vizinhos onde as pessoas viviam, que vieram para a Europa por não haver condições nos seus países. Muitas não querem vir para a Alemanha.

Quando os refugiados saem da Síria, por exemplo, querem ir para a Alemanha.

Claro, mas antes da guerra não vinham para a Alemanha. Começaram a vir quando a situação na Jordânia e Líbano se tornou incomportável. Merkel fingiu que a Alemanha era um país acolhedor e hospitaleiro, mas não fez nada para as pessoas que chegavam. Limitou-se a acolher, dar-lhes um tecto e pronto. É muito mais benéfico para essas pessoas se estabilizarmos os seus países do que se esperarmos que morram afogadas no Mediterrâneo e que venham ter connosco sem lhes darmos quaisquer perspetivas de futuro.

Que políticas acha que Merkel irá aplicar neste terceiro e último mandato tanto na Alemanha como na Europa?

Acho que o seu grande projecto será a Europa. Não acho que vá focar a sua agenda na Alemanha. O seu objectivo agora é o legado que deixará para os livros de História. Merkel tentará que seja retratada como aquela que integrou a Europa, o que é fundamental para as exportações alemãs. Uma desintegração europeia iria prejudicar a economia alemã. Merkel terá uma estratégia dupla. Por um lado, quer que os mercados disciplinem os países do Sul da Europa com taxas de juro altas e, depois, dirá que aceitará transferências entre a zona euro, mas só se subscreverem reformas estruturais permanentes. A sua visão da Europa é a seguinte: uma área de competição em que a Alemanha, que tem uma indústria muito forte, usa os outros países como oficinas de força de trabalho barata. O capital das classes médias entra no sistema financeiro alemão e depois as exportações inundam os mercados mundiais, nomedamente na Ásia. Isto é exatamente o que a economia alemã está a fazer. Por outro lado, Merkel quer forjar uma maior convergência na política externa. Em consequência da sua História, a Alemanha não pode construir um exército forte. Não é possível. A Alemanha sempre precisou das instituições europeias para impor os seus próprios interesses políticos e sob a bandeira da União Europeia avança com as políticas alemãs. Merkel quer transformar a Alemanha num actor político mundial sob a política externa comum. Acho que este é o seu objectivo.

Durante a campanha eleitoral sempre que a necessidade de reformas da zona euro e UE eram abordadas, respondiam que só depois das eleições francesas e alemãs, mas agora será ainda mais difícil fazê-las com o AfD no parlamento. Não haverá uma mudança na orientação da austeridade. Merkel poderá aceitar algum tipo de transferências, mas em troca exigirá o corte de pensões e salários aos países do Sul da Europa.

Merkel não irá transformar a zona euro nem um pouco?

Talvez concorde com a criação de um Fundo Monetário Europeu, mas o dinheiro apenas virá em troca de reformas estruturais. Portanto, por um lado dará um pouco de dinheiro para investimento, mas, por outro, vai retirá-lo dos bolsos dos trabalhadores. Merkel diz que não há problema em se ter um orçamento e um pouco de despesa, mas só se em troca forem aplicadas reformas estruturais. Terá de manter a linha dura até os franceses aceitarem este negócio. Esta é basicamente a mentalidade que tem da gestão da zona euro. Relativamente ao desequilíbrio da zona euro, Merkel diz que tudo ficará bem se os outros países cortarem pensões e salários e que com a desvalorização interna é possível resolver esses desequilíbrios. O que se pode observar na zona euro é que está a ter um superávit de exportações com outras regiões do mundo. A Alemanha é a economia líder que usa toda a Europa pelo seu capital e trabalho baratos e, em troca, os outros países podem, a reboque da Alemanha, receber algum alívio para saírem da crise.

Emannuel Macron, o presidente francês, quer negociar com Merkel uma maior integração europeia. Acredita que possamos assistir ao retorno do eixo franco-alemão com Macron?

Em certo sentido sim, mas não num positivo. A UE alargou-se demasiado, abrange demasiado países e economias tão diferentes. Tem agora 28 Estados-membros sem qualquer processo de decisão formal e Merkel e Macron avançarão com a “coligação da vontade”. Macron quer ele próprio reformas estruturais com o corte de salários, quer dar prendas fiscais aos ricos, um maior papel ao exército francês no Médio Oriente. A zona da influência da Alemanha sempre foi a Europa de Leste, que é muito importante para as exportações alemãs, enquanto a França sempre se focou no Mediterrâneo e na no Magrebe. Querem ressuscitar o eixo franco-alemão, mas o preço será a Alemanha dar um pouco de dinheiro e a França aplicar reformas estruturais para, juntos, avançarem com as respectivas políticas externas. O Brexit é uma enorme oportunidade por o Reino Unido ter deixado de poder intervir na definição de uma política externa europeia mais integrada. Tanto Merkel como Macron querem-se tornar mais independentes dos Estados Unidos, que se está a afastar do Médio Oriente e da Europa para se focar na Ásia-Pacífico. Alemanha e França serão os próximos hegemónicos.

Por inúmeras vezes dissemos que é necessário abolir o Pacto de Estabilidade e Crescimento para se poder fazer investimento público, mas a Alemanha sempre disse que não. Contudo, agora Merkel diz que quer excepções, mas apenas para a área da Defesa. Podemos então ver com muita clareza que é muito pragmática. Schauble chegou inclusive a dizer ser a favor de eurobonds e da criação de um Fundo Monetário Europeu, mas só depois de todo um processo em que os outros países abdicam da sua soberania democrática. Se olharmos para a ideia de um orçamento europeu e se tivermos em conta que as economias são tão distintas, o orçamento teria de ser muito maior do que o dos Estados Unidos. De acordo com economistas, seriam precisos cerca de 10% do PIB europeu para estabilizar a zona euro com os actuais desequilíbrios. Então, Macron vai ficar calado face às exportações alemãs e proceder a cortes de silêncio em troca de receber um enorme orçamento, não se vai somar ao orçamento nacional mas substituí-lo. Teria de se cortar nos orçamentos nacionais para se aumentar o europeu, que seria decidido em Bruxelas sob influência alemã. Os parlamentos nacionais deixariam de ter qualquer poder em termos orçamentais e esta ideia é de Macron.

Esta é a quinta cimeira do Plano B. Como vê esta iniciativa?

Acho que é importante. Vivemos num tempo de desintegração na Europa e a integração a que temos assistido nos últimos anos foi sempre a do grande capital e de bancos contra os direitos dos trabalhadores. Esta integração da finança e das multinacionais apenas está a fortalecer a extrema-direita. É muito importante continuarmos com este debate porque nos próximos anos podemos confrontar-nos com uma nova crise. O Banco Central Europeu estabilizou o sistema financeiro, mas não a economia real. Estão-se a criar bolhas e uma nova crise irá afectar os países da periferia europeia, confrontando os seus governos com novos desafios e escolhas, como a que a Grécia teve de se confrontar: ou aceitam mais austeridade ou são expulsos da zona euro. Se um governo de esquerda se deparar com uma situação similar precisará de uma alternativa. A única real ameaça ao poder da Alemanha é a de se sair da zona euro com um plano alternativo.

Qual é o plano alternativo que defende? Sair do euro ou reformar?

Não acredito que sair ou reformar o euro seja um fim em si mesmo. Acho que um sistema de estabilização das taxas de câmbio tem os seus desafios por o Bundesbank ter de baixar a taxa de inflação, enquanto os outros países não o podem fazer. Se tiverem muitas importações, então estas ficariam mais caras e, portanto, também precisariam de ter um mecanismo desvalorização das dívidas, mas, por outro lado, também é preciso dizer que nunca existiu tanta austeridade como na zona euro. O problema é…. A Alemanha e apenas se pode curar o euro se se mudar a Alemanha, mas se não se conseguir – e os desempregados e os trabalhadores portugueses, gregos, espanhóis não podem esperar que a esquerda alemã mude a Alemanha – é preciso avançar com outras propostas. É preciso um sistema para gerir as taxas de câmbio e até o Bundesbank estaria disponível para apoiar algum tipo de estabilização das outras moedas por o pior para a Alemanha ser o caos.

Entrevista de Ricardo Cabral Fernandes / Parceria jornal i[1]

Links:

  1. http://www.comunidadeculturaearte.com/fabio-de-masi-a-economia-alema-depende-da-forca-de-trabalho-barata-do-sul-da-europa/